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‘Futur passod na presente’, entrevista ao rapper Revan Almeida

Uma conversa com o rapper Revan Almeida no Mindelo já em espírito natalício. Revan mudou-se para São Vicente há uns anos mas a sua ilha natal é a pacata São Nicolau. É designer gráfico freelancer, e prefere essa independência do que um emprego aborrecido que lhe retire a criatividade e tempo que o rap exige. Acaba de lançar Futur passod na presente que faz uma viagem pela música tradicional de Cabo Verde, trazendo a sua força para o rap. Em 2017, o álbum Retardado no Futuro já surpreendera. Entre o sentido político do rap e a vida por Cabo Verde, sonhos e frustrações da sua geração, o que mais lhe interessa é agitar mentalidades e a capacidade de expressão.

De onde vem a tua relação com o rap?

A minha relação com esse género parte de uma necessidade de utilizar a palavra, para expressar ideias, sentimentos e de contribuir de alguma forma — se não fosse o rap podia ser qualquer outra. Só que o rap dá-me as ferramentas que eu preciso para chegar ao meu público, então, o rap é uma ferramenta que utilizo para passar uma mensagem e é essa a minha motivação: transmitir algo, ser um contador de histórias. Muitos outros artistas podem ter um outro sentimento: “não, gosto de música porque só faço rap”, mas eu tenho necessidade de me expressar, então o peso do meu conteúdo é muito grande em relação a outras questões, tenho essa preocupação. Se algum dia deixar de fazer rap, continuarei a fazer o meu trabalho de contar histórias uma outra linguagem. 

E enquadras-te num rap de crítica social e política ou de descrever o quotidiano, etc, que está de algum modo ligado?

Acaba por ser as duas coisas, vai depender muito do estado de espírito no momento em que estou a escrever, a necessidade de exteriorizar uma coisa que seja pessoal ou mais social, mais do meu quotidiano. mas eu posiciono-me entre ambas as coisas, não sou uma pessoa que fala muito de mim, mas falo de mim às vezes e também falo da minha rua, falo das minhas cidades, falo das pessoas e dos acontecimentos.

Como descreves a juventude em Cabo Verde?

Tem várias excepções, mas na grande maioria, se for analisar é uma geração fruto da situação política ou socio-política de há alguns anos atrás. Seria previsível, não? Não é diferente do que está a acontecer no mundo inteiro. Os jovens não lêem muito, não têm grandes referências, não conhecem coisas que para nós podiam ser óbvias que conhecessem. Há uma certa resistência a procurar informação, fica-se à mercê do que se vê nas redes sociais. Vão aparecendo alguns jovens que nos podem surpreender mas, na maioria, temos uma sociedade onde o conhecimento é condicionado por uma descarga de informação grande em que eles acabam por consumir só o que é mais imediato, o que vem nas redes sociais… Tanta escolha acaba por baralhar. E as pessoas com as quais se dão, os seus círculos, são normalmente pessoas com os mesmos hábitos e que frequentam os mesmos sítios. Então acabam por ser quase todos iguais. Nessa postura de reproduzir acabam sendo cada vez menos questionadores. Um dos nossos desafios no Kubaka Projecto (no bairro Alto Bomba), foi plantar sementes para que os jovens começassem a questionar. 

Em que é que se traduz uma postura política, no teu entender?

Primeiro, começando por eles próprios, questionar o seu papel como agentes ativos pela sua cidadania, o que é que estão dispostos a fazer pelo desenvolvimento da própria localidade. E depois entender como é que funciona a política, qual é a sua ideia em relação à política, para que serve, como se posicionar, perante as desigualdades, nomeadamente em termos de oportunidade em relação a outros lugares por nascerem naquele meio: questões de habitação, alimentação, situação económica, oportunidade de frequentar espaços abertos para todos, habitação, por que razão são empurrados para a periferia, etc. Tem a ver com tudo isto.

Como se pode passar essa curiosidade e espírito de questionamento para os jovens?

Acho que seria de esperar que todos eles saíssem transformados, mas nós acreditamos que alguns saíram, tanto que a partir daquela experiência surgiram alguns movimentos cívicos iniciados por eles, criaram uma associação, começaram a aparecer cartazes na cidade, a fazer algumas questões. Muitas pessoas começaram a ver aqueles cartazes e a perguntar. O próprio produto final da residência artística, que foi um álbum, está repleto de mensagens desse género. 

Mas estão a confrontar os políticos ou a ordem das coisas em geral?

Estamos a confrontar quem pode fazer diretamente alguma coisa para melhorar a sua situação, que é a que tem a ver com o poder local, mas não ficamos por aí. A partir do momento em que eles estejam preparados para pensar pela sua cabeça começando por questionar, vão ganhar uma postura que não é passiva, nem de vitimização. Muitas pessoas sentem-se vítimas e acabam por se vitimizar, então é a não vitimização, e ter consciência que podem fazer alguma coisa para mudar a sua realidade. Que poder está mais próximo? É o poder local e tentamos perceber o que o poder local tem de propostas para aqueles bairros, para aqueles jovens, tanto numa política humana como de infraestruturas. 

É uma transformação de atitude para si próprio, não é?

A mensagem na verdade não é para os políticos mas para eles. Agora, o que é que vão fazer em relação aquilo? Pessoalmente tenho muitas mensagens políticas na minha música, mas o meu ouvinte final não é o político, é a pessoa que vai ouvir vai tomar uma atitude política. 

Preferes escrever sobre coisas muito concretas, literais e imediatas?

O literal acaba por limitar o produto final de diversas formas. Uma delas é a música não sobreviver bem com o tempo. Pode ser uma música que não me dê vontade de ouvir daqui a cinco anos ou mais, por ser muito direccionada para questões muito efémeras. Depois tenho a questão do sub-consciente, nós sabemos que estamos a plantar sementes que vão dar fruto daqui a gerações.

Há uns anos parecia que muito do rap que se fazia por cá tinha sempre uma mensagem de boa conduta, um pouco moralista. 

Tens essa  perceção que as músicas moralistas que ouvias há uns anos era muito daquele momento e parecia um trabalho mercenário. Utilizavam o rap como um instrumento para um fim daquele momento, mas podia ser feito de outra forma e isso também prejudica a mensagem, porque o jovem também percebe e nunca mais ouve aquelas músicas. Mas se o próprio artista tiver envolvido na causa pode ter a consciência de que o modo como se posiciona acaba por influenciar muito mais do que a mensagem passada pela música, a forma que ele vai agir vai influenciar a forma de agir de uma infinitude de jovens. É sobre plantar hoje e colher amanhã. Nós trabalhos muito com o sub-consciente das pessoas.

Consideras o rap crioulo um movimento?

Sempre houve alguém a chamar o rap crioulo como movimento mas eu não sei se podemos chamar de movimento quando não se tem um inimigo claro. Em cada religião reflete-se uma realidade, o rap acaba muitas vezes por ser amplificador de uma causa. Muitas pessoas podem dizer “o rap é misógino, violento”, mas o rap é o quê? Um espelho, amplifica uma coisa, então não podemos caracterizar o rap em si porque ele é um amplificador daquela realidade. É como se eu dissesse que o jornalismo é misógino ou violento, porque li dez matérias violentas. 

Mas tem um pendor coletivo?

A situação em São Vicente já foi mais coletiva porque havia poucos estúdios, então os rappers encontravam-se quase sempre nos mesmos sítios, aí já se sentia uma união maior, agora as coisas estão muito mais fragmentadas: eu consigo gravar em casa, fazer a minha música toda em casa e dançar. 

Fizemos uma programação para o mês internacional do Hip Hop, em novembro, com workshops, trouxemos pessoas com experiência em agenciamento de artistas, negociação de shows, palcos e essas coisas, para falar com aqueles jovens, sessões sobre graffiti, sobre breakdance, sobre beatbox, foi um plano muito diverso. Através da net conseguimos divulgar o workshop, a internet veio democratizar a relação que o artista tem com o ouvinte. 

Porque é que o rap está muito ligado à juventude e as pessoas mais velhas deixam de se manifestar neste género de música?

Temos poucos cotas a fazer rap porque o rap em si consome muito tempo do rapper. O artista chega a uma fase da vida que toma algumas decisões, se não tomar, há uma operação social e familiar para que ele seja obrigado a tomar essas decisões. Alguém disse “a música é egoísta”, para teres um retorno da música tens de te dedicar com exclusividade. 

A escrita vai ficando natural, temos o hábito de fazer rimas por improviso então as rimas e as métricas vão sendo encaixadas pelo tempo, articulas o teu pensamento e ele vai ficando mais rápido. Se eu tiver um tema posso escrever em poucas horas uma música inteira, mas a questão depois é: fazer, arranjar, fazer o instrumental, gravar, fazer a pós-produção, fazer o vídeo… implica muito trabalho e tempo. 

É caro?

Pode ser barato quando és um autodidata, se fores para estúdio já não é. Por exemplo, no mínimo uma captação custa 20€ aqui em São Vicente, depois tens o instrumental que pode custar 30€, a pós-produção cobra 50€, já tens 100€ que são 10 contos, para uma música só, sem falar do vídeo que quando o fores fazer, se encontrares uma pessoa caridosa, cobra-te 150€. Tu vais gastar 250€ numa música só, uma música que te pode não trazer nada, e estou a falar em low budget porque os clips são no mínimo 1000€.

Vocês têm preocupação em trazer os vários géneros musicais cabo-verdianos, como morna, funaná, coladeira, mazurka, batuco, finason, para o rap?

Se disseres “vocês” uma pessoa vai pensar que existe um movimento que tem essa preocupação, mas na verdade não. Eu tenho estado a tentar diferenciar o meu e a estimular outros colegas a fazer o mesmo, embora não seja uma coisa nova, muita gente já o fez, apenas não foi adotado como estilo ou identidade pessoal. As pessoas que já fizeram, fizeram uma música ou duas usando essa mistura quando queriam falar da cachupa, da saudade da terra, acharam que a música servia como um bom pano de fundo para aquele tema e depois voltavam à sua rotina normal de fazer música rap mais americanizada. A minha mistura é muito mais a de procurar as minhas raízes, entendê-las e fazer novas propostas, utilizando a minha identidade que vejo no rap, e imagina que em algum dia surge uma oportunidade de apresentar a minha localidade ou cabo-verde nalgum sítio do rap, e quando as pessoas me ouvirem e a música soar americana eu não estou a criar nenhum impacto. Imagina vai um americano, vai um brasileiro, vai um angolano, se não vês as diferenças entre eles é como se… nem sei. Tenho que aproveitar as minhas heranças porque eu tenho direito a elas, são minhas, não tenho nada a perder, pelo contrário, enriqueço mais a minha música com o tradicional.

Existe um certo medo de experimentação?

O mercado musical grita por coisas novas, mas nós não somos capazes de ouvir, a tendência é de reproduzir a última música que brilhou. Se eu insistir no meu estilo e experimentar outras coisas, pode ser que tenha sorte. Esperava-se que a morna tivesse um power. Quem são os novos escritores? A seguir ao Germano de Almeida quem vem? Quem é o novo escritor? O problema está aí. Ter escolaridade e ter uma educação artística. Quem é o maior empregador em Cabo Verde? O Estado, mas são empregos onde as pessoas vendem as suas horas e depois acabam por viver uma vida em ciclo, não são pessoas que vão fazer coisas muito atrevidas, querem segurança, tens que ter um emprego fixo. Eu sou freelancer eu vivo nisso e gosto de viver com essa adrenalina, mas há cada vez mais pessoas a escolherem uma vida pacata. Nós temos que entender. Quem podia estar a estimular o aparecimento de novos Germanos? Estaria a ser ingrato ao dizer que nada está a ser feito mas temos de questionar, qual é o efeito daquilo a longo prazo, está a ser feito da melhor forma? Eu conheço muita gente talentosa a fazer trabalhos repetitivos, de fábrica. Tenho um colega da música que vivia na Praia depois fez família e foi viver com ela para casa dos pais e agora trabalha como guarda-noturno. Já há uma perda daquele ânimo e criatividade. 

Revan Almeida, foto de Marta LançaRevan Almeida, foto de Marta Lança

Qual é o teu principal princípio de trabalho? Há muita comparação entre os rappers?

Uma questão que sempre me debato tem a ver com auto conhecimento, conhecer-me a mim próprio em várias questões ajuda-me. Porque é que nós temos muito menos produção a nível do rap, é porque os artistas do rap têm caído no erro de fazer comparações e não lançam álbuns com receio de serem inferiorizados. Eu não tenho tempo de comparar o meu caminho com o de outra pessoa porque temos vivências diferentes. Conhecendo a mim próprio eu consigo me blindar de certos vícios. Há dias perguntaram-me “o que estás a esperar do álbum?” e eu respondi que não estou a espera de nada, é uma forma de me proteger a mim mesmo, se chegar um bom feedback é muito bem vindo. 

Em Cabo Verde, o mundo está sempre presente nem que seja pela emigração. Mas parece que há um certo desligamento entre a realidade aqui e a das disporás caboverdianas no mundo. 

“A emigração na família não acrescenta muito se pensarmos como é a vida das pessoas no estrangeiro. O que é que eles trazem para além de dinheiro? Acho que trazem pouca coisa para além do dinheiro. O meu pai viajou pelo mundo a vida inteira mas o meu pai não conhece o mundo. O meu pai viajou e trabalhou no barco, pisou muitos países mas não conhece. Quando voltam a Cabo Verde vêm matar saudades e estar em festas, gastar o dinheiro, movimentar a economia. Há uma grande dependência em Cabo Verde da família emigrada, principalmente nas ilhas periféricas. Temos ilhas onde as pessoas vivem das remessas do estrangeiro, não há outras fontes. O caboverdiano ainda é sustentado por outro caboverdiano que está fora do país. E quando voltar já vem na idade da reforma e não vive muitos anos. Trabalhou numa rotina frenética e veio morrer cá.

Não se conta o que se passa lá fora…

Há uma omissão da vida no estrangeiro. Muita gente não volta para a terra se não tiver dinheiro. Conheço muitas histórias de pessoas a viver nos arredores de Lisboa cujas condições de vida não são nada boas, passam dificuldades e nunca mais vêm para a terra com o simples argumento: “o que é que vão pensar de mim se eu for sem dinheiro?” É uma questão de honra, quem vem tem que gastar, tem que dar dinheiro a outras pessoas e eles sentem-se inferiorizados e têm vergonha. Isto não acontece somente no exterior mas também em imigrações internas. Conheço pessoas daqui em São Vicente que não voltam para São Nicolau porque estão a viver mal e não vão tentar uma nova vida na terra deles por uma questão de vergonha. Acho que há uma romantização em relação ao emigrante. Quando ele vem do estrangeiro vem utilizando as roupas que guardou o ano inteiro, faz o cabelo, faz a barba antes de vir, utiliza o seu melhor perfume, então as pessoas pensam que a vida em Portugal é maravilhosa.”

E o que pensas das perspectivas para as novas gerações aqui nas ilhas?

A nova geração vai com uma postura de conseguir empregos no Estado, a maioria deles, porque querem segurança, querem uma reforma querem crédito no banco, querem uma casa já. Nós não temos uma educação financeira, nós queremos parecer bem perante a sociedade, queremos que as pessoas sintam que estamos bem graças à pressão social. Qual é a melhor forma de um recém formado conseguir um carro e casa? Endividar-se com o banco conseguindo emprego no sector público. Mas a vida deles como vai ser? Trabalham muitos, fazem o que têm de fazer. Esperam pela reforma que nem cobre todas as despesas de saúde porque boa parte de muitas consultas ainda são no privado e o MPS não pode. Filas para operações, consultas, tudo, filas para o que tu passaste a vida toda a pagar, depois morres. Não te ensinam que existem outro caminhos, que podes ser criador de outros caminhos da tua própria riqueza, podes ser teu empreendedor. 

Como se pode furar esse esquema?

A única forma de furar esse esquema seria através da independência. Entre a questão da independência, entre a questão da liberdade, ter liberdade de espaço, liberdade de fornecer, liberdade de ir e vir, liberdade de pensamento. Cobrar o que quiser e quando quiser. Liberdade dos costumes, é convencional que uma pessoa case e tenha filhos, mas és livre ou não és livre? Vão pensar que és doido porque és nómada. Tens um problema por não quereres assentar e casar e ter uma vida igual à das outras pessoas.

 

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Futur passod na presente é o nome do novo álbum de Revan de Almeida. Trata-se de uma viagem do Rap à música tradicional de Cabo Verde. Além se poder deliciar do Rap sem perder o seu Groove original, somos envolvidos por samples e melodias de música das ilhas regadas com letras cujas temáticas vão de encontro ao quotidiano cabo-verdiano. O álbum visita estilos como coladeira, morna, mazurka, batuku, finason, funaná etc. Em cada visita constata-se que o tema escolhido coincide perfeitamente com a os temas da esfera musical deste mesmo estilo, propondo o que Revan chamou de “Continuidade”.

Passamos por intervenção e crítica social, coladeira; valorização de costumes, problemáticas sociais como o consumo   e efeitos do alcoolismo, desafios de sobrevivência, sátiras, novas formas de “sodade”, resiliência, questionamentos etc. Na busca por uma identidade musical, a intenção do artista, para além conhecer melhor a música cabo-verdiana, é a de aproveitar da rica herança musical da terra para criação de um diferencial para a sua musica, fazendo-se se diferenciar do Rap que se faz em outra paragens.

“Como quem ouve uma melodia muito feliz”

O álbum é baseado em inúmeras referências, e começa com uma nova interpretação da primeira frase do livro Chiquinho. Demorou quatro anos a ser construído, o conceito surgiu em 2017, após o lançamento do álbum Retardado do Futuro. O lançamento foi a 18 de novembro, nas plataformas digitais e em CD físico, data que se celebram os 7 anos da Editora Kaza Preta.

Para mais informações:

Revan Almeida: 9888715

E-mails: revanalmeida@gmail.com kazapreta@gmail.com

YouTube:  https://www.youtube.com/playlist?list=PL3gGACnRnd5e4qToNwYymVHWzS77CTIuN

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